PROCESSO NEOINSTITUCIONALISTA COMO CONTRAPONTO EPISTEMOLÓGICO AOS FUNDAMENTOS DO NEGACIONISMO E DA PÓS-VERDADE
Palavras-chave:
AUTONOMIA EPISTÊMICA; DECISÃO JURÍDICA; DIVISÃO SOCIAL DO TRABALHO COGNITIVO; PÓS-VERDADE; VACINAÇÃO COMPULSÓRIAResumo
No ano de 2020, o Supremo Tribunal Federal, provocado pelo ajuizamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.586, julgou constitucional o artigo 3, III “d” da lei 13.979, decidindo que o Estado brasileiro pode determinar que seus cidadãos se submetam compulsoriamente a vacinação contra a COVID-19. Isto é, o colegiado manifestou-se no sentido de que estão alinhadas com a constituição de 1988 as práticas de imposição de medidas restritivas indiretas (ex: multa e impedimento de frequentar determinados lugares) contra aqueles que optaram por não se vacinar. No acórdão de relatoria do Min. Ricardo Lewandowski registrou-se que a vacinação compulsória não se confunde com a vacinação forçada, porquanto aquela é marcada, dentre outras especificidades, pela base científico-evidencial que a sustenta. O presente resumo focaliza, especificamente, aspectos epistemológicos deste critério distintivo e seus impactos nas decisões jurídicas. É que a exigibilidade vacinal estabelece uma tensão entre as expectativas de autonomia epistêmica cultivadas pelo senso comum, segundo as quais todas as pessoas poderiam avaliar as razões por que devem ou não se vacinar, e a noção de divisão social do trabalho cognitivo, que se baseia na assimetria epistemológica em que o mundo se encontra afundado. Ernesto Perini defende que “para qualquer tema sobre o qual não se é especialista, deve-se deferir a quem sabe mais”, porque devemos ajustar nossas crenças as evidencias disponíveis (PERINI, 2021). Essa proposta pode parecer autoritária para aqueles que se louvam na divisão igualitária do conhecimento, sobretudo no contexto jurídico, em que decisões sobre assuntos técnico-científicos não passam, necessariamente, por um filtro científico-institucional integrado ao procedimento das ações objetivas de controle de constitucionalidade. O que o trabalho buscará esclarecer a partir da obra de Perini é que a cultura humana impõe a assimilação pelos conviventes de conteúdos opacos, ou seja de conteúdos cujo entendimento não é de domínio geral, porque o grupo (comunidade) sempre sabe mais em comparação com as pessoas singularmente consideradas. Em outras palavras, é impossível que sejamos proficientes em todos os campos do conhecimento, o que impõe a criação de centros de produção, controle e fiscalização direcionados a exercitar a divisão do trabalho cognitivo. A incursão que se pretende com o este trabalho consiste em diferenciar argumentos de autoridade, cuja existência no direito não se nega, de proposições decisórias baseadas em conhecimentos específicos, que devem ser recepcionados e legitimados a despeito de sua opacidade. No caso de decisões que lidam com assuntos técnico-científicos dotados de significativas especificidades a questão da legitimidade do provimento (decisão) se mostra ainda mais delicada, visto que a constituição impõe o dever de fundamentação dos pronunciamentos jurisdicionais (art. 93, IX), ao passo que o conteúdo científico evidencial da vacinação não pode ser examinado diretamente por quem não seja expert. O presente trabalho buscará indicar mecanismos processuais, por meio dos quais os consensos científicos podem ser transportados ao discurso jurídico, a fim de compatibilizar racionalidade e legitimidade decisórias, sem incidir em transgressão epistêmica.